quinta-feira, 30 de abril de 2015

A Cachaça é nossa! - Como fazer cachaça em casa.

"A aguardente de cana foi, em vários momentos da nossa história, a marca da Independência e da soberania da Nação. Era a bebida que unia nas conspirações libertárias, que estimulava os atos de bravura e selava as vitórias do povo. Assim, ela comemorou, nas ruas, O Grito do Ipiranga, festejou a Abolição da Escravatura, saudou a República e brindou a Nacionalidade. Nas Guerras Cisplatinas (1852) e do Paragai (1864-70), e no massacre de Canudos (1893-7), a cachaça banhou o fio da espada e foi tomada com pólvora "pr'a dar coragem" - Cachaça, prazer brasileiro, Marcelo de Nóbrega da Câmara Torres

Essa semana publiquei em um grupo de cervejeiros caseiros do facebook, uma foto da destilação de cachaça que estávamos fazendo e a publicação acabou tendo uma grande repercussão, muitos se interessaram pelo processo e muitas pessoas vieram até mim pedindo por mais detalhes, então decidi postar aqui um breve passo-a-passo do processo como alguns pediram.

Imagino que o que mais tenha chamado a atenção de todos foi o equipamento utilizado, no lugar do tradicional alambique de cobre, algo muito mais ao estilo "breaking bad", feito inteiramente de vidro e que permite que se assista todo o processo de evaporação e condensação do mosto escuro, em um líquido cristalino como água da fonte, um Alambique de Femel.
Os mais conservadores defendem que a cachaça deve ser fabricada em equipamentos de cobre, mas além de o Alambique de Femel ser mais barato que um alambique de cobre, ele é seguro. Existe uma cor
rente no mundo da cachaça que defende o fim do uso de algumas partes de cobre dos alambiques, pois o cobre adiciona à bebida substancias cancerígenas que dizem não ser eliminadas nem mesmo após a bebida passar por um filtro de carvão vegetal. Além disso, não é apenas cachaça que se pode fazer com ele, whisky, rum, calvado, brands em geral, a criatividade é o limite. 

PASSO-A-PASSO:

Materiais: 
Garapa, um recipiente para fermenta-la (balde fermentador), Alambique de Femel; duas mangueiras para entrada e saída da água que vai condensar os vapores, uma fonte de fogo, recipientes para coleta e um alcoômetro para medir o teor alcoólico e um densímetro ou refratômetro para medir a concentração de açúcares no mosto.

1.A Fermentação do Mosto
Assim como é na produção da cerveja, a mágica se inicia com a fermentação e ela é fundamental para a qualidade do produto final. O mosto da cachaça é a garapa da cana-de-açúcar que será fermentada. Na fermentação da cerveja normalmente a Densidade Inicial não ultrapassa 1.060, ou 15ºBrix (com exceção de cervejas "high gravit" e mais extremas). Com a cachaça é o mesmo, o ideal é que o mosto tenha uma concentração de açúcares abaixo de 15Brix. Dependendo da época do ano as concentrações de açúcares na cana aumentam e diminuem, se a garapa for de cana boa, colhida na época certa a concentração de açúcares pode ultrapassar os 15Brix de longe, chegando a até 23ºBrix -1.094! Nesse caso basta diluir com água até atingir a faixa de densidade desejada. 

1.1 - O Fermento

1.1.1 - Pé-De-Cuba
A versão caipira do nosso "starter" é o "pé-de-cuba". O pé-de-cuba é literalmente um starter natural, onde a intenção é multiplicar leveduras selvagens. Inicia-se o processo com uma pequena quantidade de garapa diluída até 5ºBrix e aquecida a 30ºC. A esse líquido adiciona-se fubá, quirela, farinha de arroz, limão, pedaços de cana... Não necessariamente todos esses, escolha seus preferidos.
A medida em que todo o acúcar é fermentado, deve-se adicionar mais um pouco de garapa, com o Brix um pouco mais alto que da vez anterior e assim sucessivamente, a intenção desse processo inicial é produzir leveduras o bastante para fermentar o mosto.  Quando houver fermento o suficiente, o que se dará após alguns dias repetindo esse processo, deve-se adicionar a garapa que será fermentada e depois destilada. Depois de fermentado o mosto deve ser transferido para o alambique e a "lama" do fermento no fundo do fermentador deve ser mantida para fermentar a próxima leva. 
Já deu pra perceber que a cachaça fabricada com o pé-de-cuba passa por um processo de fermentação natural, feito por leveduras selvagens encontradas nesses meios e também por bactérias. 
Muitos alambiqueiros guardam o segredo de seus pé-de-cuba às sete chaves, guardando assim a fórmula de sua cachaça. O ponto negativo do pé-de-cuba é que é grande a chance de o resultado final ser um mosto ácido e de odor não muito agradável. Desenvolver um pé-de-cuba é um processo lento que o alambiqueiro faz com muita paciência e experimentação. 

1.1.2 - Fermento Industrial
 Pode ser até mesmo o fermento de pão, mas o cervejeiro caseiro está familiarizado com centenas de diferentes cepas de leveduras, portanto pensar em um fermento para seu mosto não deve ser um problema tão difícil. Se a ideia for produzir uma cachaça diferente, criatividade não vai faltar. De qualquer forma sugiro o M-10 WorkHorse da Mangrove Jacks, que é um fermento "pau pra toda obra", serve não só para cerveja mas para qualquer tipo de fermentado e trabalha a até 32ºC, o que está dentro da faixa ideal para as leveduras selvagens da cana que também estarão presentes no mosto, trabalharem junto com o fermento. A menos é claro que você opte por pasteurizar o mosto para que apenas a levedura selecionada faça o serviço. Para uma cachaça mais autêntica, não pasteurizar o mosto e permitir que a flora selvagem ali presente também atue pode ser uma opção. 

Normalmente a fermentação da cachaça se dá em torno de 3 dias, mas cada diferente cepa de levedura tem seu devido tempo de trabalho. 

2. Destilação

2.1 Separação do Mosto
O mosto estará pronto para ser destilado logo que a fermentação houver terminado, quanto antes melhor, nada de maturação. Assim como na cerveja, uma vez que todo o açúcar for consumido, o fermento vai decantar e deve ser deixado para trás quando o mosto for transferido para o alambique. O mosto recém fermentado deve ter aroma frutado e agradável e não avinagrado e azedo A lama que sobrou pode ser usada para fermentar uma próxima leva, bastando somente adicionar o mosto com a temperatura e densidade corretas no fermentador. 

2.2 Aquecendo o Mosto

Comece aquecendo o mosto rapidamente até cerca de 50ºC, a partir daí abaixe o fogo e tenha paciência. A cachaça não leva o apelido de "pinga" a toa, a destilação é um processo lento, gota a gota o líquido cristalino vai pingando do fim do destilador. Quanto mais lentamente esse processo ocorrer, menos água será evaporada e o resultado será um início de destilação com um teor alcóolico bem alto (em torno de 70%Gl) o que vai aumentar o seu rendimento.
A medição do teor alcoólico deve ser feita por meio de um alcoômetro, que é quase idêntico ao densímetro que o cervejeiro já conhece, mas que mede o teor alcoólico no lugar dos açúcares.

2.3 A Cabeça o Coração e a Cauda
É fundamental para que o resultado final tenha bastante qualidade, que seja feita a separação dessas três porções e para isso ser possível é preciso que se saiba qual será o rendimento de sua destilação, ou seja, qual a porcentagem do mosto que será convertida em cachaça. O rendimento da alambicada vai depender diretamente da fermentação, assuma que será algo em torno de 10% do total do mosto, então se foram fermentados 5 litros de garapa você vai produzir meio litro de cachaça. 

2.3.1 A Cabeça
A porção correspondente à cabeça são os primeiros 10% do total destilado, é um líquido muito alcoólico, entre 65º-70ºGl. Essa parte deve ser descartada por conter entre outras substâncias, um pouco de metanol.

2.3.2 O Coração
O Coração é a cachaça propriamente dita e sua coleta deve se iniciar imediatamente após a retirada da
cabeça. Corresponde a 80% do total destilado. Inicialmente a graduação alcoólica será praticamente a mesma da cabeça, mas conforme a destilação for chegando próxima do fim o teor alcoólico do destilado irá gradativamente diminuindo. Quando líquido que está pingando do destilado estiver saindo com o teor alcoólico abaixo de 38%Gl, o coração acabou e o que virá agora é a cauda, que também deve ser descartada.

3.2.3 A Cauda
Os 10% finais correspondem à porção da cauda. Trata-se de um líquido aguado, com e que contem álcool superior, responsável por dores de cabeça e ressaca, por isso também não deve ficar de fora.
A cabeça e a cauda não precisam necessariamente ser descartadas, as grandes destilarias de cachaça não utilizam alambiques e sim colunas de destilação, e, não fazem a separação apenas do coração, para aumentar o rendimento utilizam tudo (um mal parecido com o da utilização de milho nas grandes cervejarias), resultando em uma cachaça de qualidade muito inferior e perfeita para causar ressacas horríveis e a longo prazo, danos à saúde. 

Portanto, se quiser aproveitar a cabeça e ao coração, faça sua coleta, guarde, e quando for destilar a próxima leva, adicione-o ao mosto já dentro do alambique. Ainda existe álcool bom nessas porções que poderão ser extraídos nessa nova alambicada e aumentar seu rendimento.

4. Filtragem - Opcional
Após a destilação há a opção de passar a cachaça em um filtro de carvão vegetal para "amaciar" a bebida. O processo, no entanto, irá amenizar consideravelmente alguns aromas e sabores característicos, então essa é uma questão bastante pessoal.

5. Descanso, Envelhecimento e Envase

5.1. Descanso
A cachaça imediatamente após destilada é uma bebida para poucos, um descanso de pelo menos alguns dias é recomendado para que se torne uma bebida mais saborosa e menos agressiva. Os especialistas defendem que a cachaça só evolui enquanto estiver armazenada em barris ou dornas de madeira, pois a porosidade da madeira permite que o oxigênio penetre na bebida e ocorram processos de oxidação, além de permitir que vapores também se desprendam da bebida e deixem o ambiente. Contudo é possível simular esse efeito mesmo se estiver guardando a cachaça em um recipiente de vidro.
O ideal é que para descansar a cachaça fora da madeira se armazene a bebida em recipientes mais largos do que garrafas, como potes de doces e palmitos por exemplo, como é feito com os moonshines americanos. Dessa maneira a área de contato com o oxigênio é maior. Também não se deve encher o recipente completamente, deixe um espaço com ar. Periodicamente abra esses potes para permitir que os vapores saiam e também que haja mais contato com o oxigênio.
Fazendo isso a cachaça vai evoluir e se tornar mais agradável.
A cachaça descansada é diferente da cachaça envelhecida, o descanso vai apesar permitir que a cachaça se acalme e se torne menos agressiva. É a cachaça pura e autêntica, sem nenhum tipo adição de aromas e sabores.
Para manter a cachaça com sua cor cristalina e seus aromas e sabores originais deve-se utilizar madeiras específicas que não transmitem nenhum tipo de característica para a bebida, apenas armazenam e possibilitam a oxidação e a troca de gases. Ou então fazer o processo descrito acima.
Um colega no grupo deu ainda a dica de armazenar a cachaça em garrafa pet. O pet seria poroso e permitiria a troca de gases. Nunca fiz dessa maneira para saber se funciona, mas imagino que um cuidado que se deva ter seria limpar muito bem até eliminar todo resquício de cheiro que costuma ficar impregnado nessas garrafas.


5.2. Envelhecimento
A cachaça envelhecida é aquela em que pelo menos parte dela passou um bom tempo (a lei pede o
mínimo de 1 ano) guardada em barris de maneira. Essa cachaça possui a cor modificada pela madeira e também seus aromas e sabores. É imensa a variedade de madeiras que podem armazenar cachaça e passar diferentes cores aromas e sabores para a bebida. É possível simular esse efeito utilizando-se de pedaços ou chips de madeira facilmente encontrados em lojas de insumos para cerveja.

5.3. Envase
Quando a cachaça estiver com os aromas e sabores desejados é hora de transferi-la para a garrafa. A partir desse momento ela vai parar de se alterar e se manterá a mesma.

Considerações finais
A cachaça é uma bebida de personalidade forte, é  muito quente é verdade, mas é saborosa, não deve ser agressiva ou desagradável. A boa cachaça, mesmo "branquinha" e sem nenhum aditivo, é delicada possui aromas que remetem a cana-de-açúcar, deve ter nuances adocicados no aroma e no sabor e claro, esquentar o peito de quem bebe, mas de uma maneira confortável, ainda que intensa. 
Segundo Câmara Cascudo, "a Cachaça aquece, refresca, consola, alimenta, alegra, revigora." É uma bebida essencialmente brasileira que quando bem feita merece o mesmo respeito que é destinado aos diversos destilados importados, muita vezes de qualidade inferior à de uma boa cachaça.

Por fim, os processos descritos na Coluna têm o intuito de auxiliar quem queira produzir cachaça e outros destilados em casa, (aproveitem, nos EUA é crime!) mas ainda é um material bastante superficial, quanto mais consulta for feita, melhor será sua bebida. Espero que façam bom uso do material e compartilhem dúvidas e experiências!